I
Uma proporção impressionante das ideias que capturaram a atenção do século XX, e por consequência, do XXI – pensemos em Freud, Einstein e Wittgenstein – foi formulada em Viena num período curtíssimo de tempo, entre a passagem do século e a Primeira Guerra. O Ulysses, de James Joyce, o poema A terra devastada, de T. S. Eliot, e o romance O quarto de Jacob, de Virginia Woolf, as três obras capitais do modernismo inglês, foram publicadas exatamente no mesmo ano, 1922. Não se trata de um fenômeno restrito ao século XX. No ano de 1806, Goethe terminava a primeira parte do Fausto e Hegel a Fenomenologia do Espírito. Por falar em alemães, as obras capitais do romantismo alemão foram escritas em um período de não mais que trinta anos, na passagem do século XVIII ao XIX, por membros de um pequeno círculo que incluía Goethe, Hegel, Kant e mais uns poucos outros. As tragédias que até hoje lemos foram produzidas em um espaço de tempo de não mais que 70 anos, durante o século V a.C., em apenas uma, Atenas, dentre umas mil cidades gregas. Setenta anos pode parecer muito, mas se se leva em conta a duração da influência que todas essas obras tiveram, é um instante. Já no século IV a.C., não eram escritas novas tragédias, apenas eram relidas as mesmas, dos mesmos três poetas, assim como fazemos até hoje.
Esses são alguns exemplos proeminentes de um fato conhecido, mas não, talvez, meditado como se deveria, da história cultural: uma tradição literária não cresce de modo estável e constante como, por alguma razão, esperamos, mas sim através de saltos qualitativos que ocorrem no espaço de uma ou poucas gerações. As formas, conceitos e atitudes que alimentam o interesse das classes educadas de uma sociedade por séculos são pensadas quase ao mesmo tempo, por poucas pessoas. O contínuo trabalho sobre esse material compacto é conteúdo de uma tradição, no sentido de tradição literária.
O fato de que o ritmo da história seja, como o dos hexâmetros gregos, composto de um período curto e um longo, impõe que a cada tradição caiba apenas um momento fundador, perfeito, o qual ela vive na forma de comemorações, comentários, glosas e disputas. Ao contrário do que pode parecer a certa concepção romântica da criatividade humana, essas práticas são absorventes o suficiente para perdurar de modo fecundo e apaixonado por muitas gerações. Não, contudo, infinitamente. O tempo longo um dia se exaure. Chega uma época em que as camadas de explicações, a atenção ao detalhe, o comentário do comentário e as disputas intermináveis aparecem como causa de obscurecimento, não de acréscimo de saber. Um grupo é, então, levado à conclusão de que a inteligência original do momento fundador da tradição precisa ser recuperada. Eis que começa um movimento de retorno aos princípios. Passado algum tempo, o próprio movimento de recuperação, que se dará em um prazo relativamente curto, de grande euforia intelectual, será visto como um “renascimento”. Se for realmente recebido pela posteridade, o renascimento, que não precisa ser chamado por esse nome, nem ser feito de forma historicamente consciente, será objeto de mais algumas camadas de comentários – até outro se fazer necessário. E assim sucessivamente. Um renascimento não é, portanto, em essência, um evento, nem uma época, mas um entrelaçamento indecomponível entre eventos, memórias de eventos, memórias de memórias, intelecções e expectativas de futuro.
A expressão mais consciente desse entrelaçamento é, talvez, o primeiro parágrafo d’A Monarquia de Dante. “É muito importante, diz, nele, o Poeta, para todos os homens em quem a natureza superior imprimiu o amor pela verdade, que, beneficiados pelos esforços de seus predecessores, trabalhem pela posteridade.” A razão de ser da recuperação do saber do passado é, como se pode ver, a possibilidade que ele abre, a uma elite de filósofos e poetas, de enviar uma mensagem para o futuro. A concepção de Dante do sentido de seu trabalho já implica todas as notas essenciais do conceito de renascimento: 1) supõe um pequeno grupo; 2) não é separada do sentido de verdade atemporal, e o diálogo entre gerações históricas que ela propõe não supõe o que depois seria chamado de historicismo; 3) envolve não dois, mas três tempos distintos; 4) convoca, e, ao convocá-lo, cria um futuro e uma tradição, o que significa que 5) se trata de um ato comunicativo que não se pode dizer consumado enquanto não for respondido e que, portanto, não pode ser historicamente compreendido se for reduzido a seu próprio “contexto histórico”. O próprio fato de o autor da Divina Comédia não constar nos livros de história como um escritor “renascentista” deve servir para nos lembrar de não nos deixarmos mesmerizar pelos rótulos historiográficos. Embora o termo esteja associado a um período histórico em particular, o renascimento das letras e das artes dos humanistas italianos do século XIV não é o único ou sequer o paradigma do que seja, de fato, um renascimento.
Pela simples razão de que tal paradigma não existe. Um renascimento não é questão de Geschichte (os eventos históricos), mas de Wirkunggeschichte (sua eficácia na produção de novos eventos). Porquanto se trata de um esquema próprio da memória cultural do ocidente, se um determinado período deve ser visto como um nascimento ou um renascimento, um “verdadeiro renascimento”, um pretenso renascimento, não é uma questão de julgamento histórico, mas de convocações dirigidas a um público futuro fictício e respostas a antepassados descobertos a posteriori. O “renascimento italiano” só pode ser integralmente compreendido se for considerado enquanto uma resposta do romantismo do século XIX ao chamado humanismo italiano do século XVI. Os autores do chamado Renascimento do século XII não sabiam que encenavam um renascimento. Foram os medievalistas do século XX que, interessados nas questões que seu próprio tempo lhes apresentava, responderam ao seu chamado. Uma revista cursiva da tradição literária ocidental mostrará que os seus eventos fundadores, desde a Reforma Protestante até o chamado classicismo de Weimar, passando pelo iluminismo, pelo romantismo e pelo modernismo apresentam esquemas análogos quanto à sua memória, a qual, sob este ponto de vista, é a principal parte de sua história.1 O mesmo se aplica, aliás, a eventos fundadores locais, como, por exemplo, a memória da Semana de 22 no Brasil.
II
O filósofo norte-americano John Deely, autor de O que distingue o entendimento humano, publicado pela Vide Editorial, costuma ser, corretamente, apresentado como um semiotician.2 O termo ainda não tem o significado estabelecido em português – chamar um estudioso de semiótica de “semiótico” é, me parece, tão infeliz quanto chamar o estudioso de retórica de “retórico” –, mas diz respeito a um especialista na ciência da ação dos signos. Trata-se de uma das novas ciências da cultura, como o estruturalismo e os estudos de mídia, que se afirmaram na vida universitária a partir dos anos sessenta. Se o praticante do novo saber mais conhecido do público foi e ainda é Umberto Eco, Deely foi o mais profundo. E pode-se dizer que o mais entusiasmado. Ele profetizava que a semiótica teria, no século XXI, um papel cultural seminal, análogo ao papel desempenhado pela ciência cartesiana a partir do século XVI e pelas ciências histórico-culturais partir do século XIX. Foi como parte desse trabalho de proselitismo que ele lecionou na UFMG, nos anos noventa, a convite, aparentemente, da professora Lúcia Santaella Braga, maior autoridade brasileira na especialidade, sua estudante e amiga que aparece no índice remissivo da obra recentemente publicada.
Semiotician é, porém, uma designação insuficiente, que não faz jus à largueza da visão filosófica do autor. Deely é, obviamente, um estudioso de semiótica. Mas é, acima de tudo, um filósofo. Não qualquer filósofo, mas um metafísico que se ocupa das mesmas grandes questões que ocuparam os grandes pensadores da humanidade desde os tempos de Tales de Mileto: qual a natureza da realidade, qual a natureza da inteligência humana e como pode ser que esta se relacione com aquela? Em que a percepção humana difere da dos animais, existe realidade objetiva? Qual sua diferença com relação à realidade subjetiva? Dadas as respostas a essas perguntas, como pode ser contada a história do pensamento humano até agora? A semiótica é a perspectiva a partir da qual ele ataca esses problemas. Tomá-lo como um “semiótico” significaria colocar suas obras na mesma prateleira das de linguistas como Saussure, Greimas e Umberto Eco, ao menos suas obras especializadas. Não há nada errado com esses autores, mas eles não se ocupam da mesma ordem de problemas que Deely. Para piorar, no Brasil, os estudiosos do signo são leitura de estudantes dos cursos de Letras e Ciências da Comunicação. Suas ideias são frequentemente aproveitadas no estudo de subáreas de interesse marginal, como a análise literária, a publicidade, o cinema, a política cotidiana, por estudantes que têm minguado interesse nas grandes questões da tradição metafísica.
As obras de Deely devem ir para a mesma prateleira em que estão os grandes nomes da filosofia, perto das de Peirce, Maritain, Husserl, Heidegger – este último, objeto de sua tese de doutorado. Como o deles, seu trabalho sugere uma visão coerente da realidade, do homem e sua própria versão da história da filosofia. A semiótica não é concebida por ele como uma nova ciência à qual poderia talvez ser dedicado um novo curso universitário, mas como uma qualidade primária da experiência humana, o reconhecimento de qual é o único ponto de partida adequado para qualquer investigação abrangente, mas não por isso menos científica, da natureza humana. Mais do que isso: a qualidade da experiência sem a consciência da qual nenhuma investigação sobre o homem e mesmo sobre o animal, científica o quanto seja, poderá se tornar uma autêntica sabedoria. Não sendo ela própria uma sabedoria, a consciência semiótica é concebida por Deely como a porta através da qual as ciências têm de passar para se tornarem uma.
E que a palavra sabedoria não dê aqui uma falsa impressão. Deely é o exato oposto do diletante. Nem sua obra é para quem busca consolo na facilidade. A graça de sua leitura resulta, precisamente, da junção do ardor visionário do filósofo no sentido estrito da palavra, que lembra, sob certo aspecto, o clima dos anos setenta, em que a própria semiótica surgiu (e que tanto contrasta com a timidez da filosofia contemporânea), a uma linguagem não raras vezes extenuante, tanto pela complexidade do tema como pelo estilo caudaloso. Consta que o professor da University Saint Thomas escrevia prodigiosamente rápido, o que talvez explique por que ele comete os mais longos períodos jamais escritos por um filósofo norte-americano.
Como todos os pensadores que se ocupam de questões capitais, ele não apresenta a sua resposta à questão do que distingue a inteligência humana como um achado individual, mas como a restauração de um saber antigo, perdido durante séculos e por ele reencontrado. A particularidade está em que os séculos nos quais o saber em questão estivera perdido equivalem ao ciclo moderno da filosofia da inteligência humana; o saber reencontrado, àquele da tradição ibérica dos séculos XVI e XVII. A sua grande visão histórica pode ser descrita como chamado, dirigido ao mundo pós-moderno, a um “renascimento latino,” ou até um “renascimento português”: um retorno à sabedoria encontrada no momento fundador da cultura lusitana. É justo usar a palavra, pois se trata de um movimento de retorno movido não por motivo antiquário, mania de originalidade, ou particular paixão por Portugal, mas porque ele entende que essa sabedoria lusitana em particular oferece o melhor ponto de partida possível para enfrentar os problemas filosóficos da nossa própria época – redutíveis, segundo ele, a problemas semióticos – e transcendê-los rumo a uma visão superior que os inclua.
Como os outros períodos de nascimentos e renascimentos, a tradição a que Deely propõe o retorno emergiu, em seus traços fundamentais, em um período relativamente muito curto, foi, em um espaço muito concentrado, obra de poucas pessoas que superaram o que havia de mais alto em sua própria época. Além disso, sua influência foi tal que a tradição que fundaram não é capaz de esquecê-los sem se tornar a parte periférica e insignificante de outra tradição. O que foi exatamente o que aconteceu, a partir do século XVIII, com as Reformas Borbônicas na Espanha e as reformas do Marques de Pombal em Portugal. Um dos feitos desta última foi a expulsão dos jesuítas em 1759, precisamente os discípulos do pequeno grupo responsável, em última instância, por elevar a cultura lusa ao patamar de relevância universal.
III
O mito fundador literário que até hoje simboliza a cultura portuguesa para si mesma e para o mundo é, naturalmente, o de Luís de Camões. Os Lusíadas, publicado em 1572, são, porém, apenas o ponto alto poético da grande época da cultura portuguesa. O legado lusitano inclui, como se sabe, obras em prosa de natureza literária, como a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, escrita quase nos mesmos anos que o poema camoniano, as Décadas, de João de Barros, publicadas a partir de 1555, hoje leitura de especialistas, e o monumento, não suficientemente conhecido pelo público atual, que são as cartas jesuíticas, que enorme influência tiveram no pensamento social ocidental como um todo. Obras que, por sua vez, eram contemporâneas das de Teresa de Ávila, João da Cruz, dos poetas do Siglo de Oro e de Cervantes.
Fruto do mesmo contexto cultural é a obra que nos diz respeito: em seu nome atual, o Curso Aristotélico Jesuíta de Coimbra, historicamente conhecido como o Conimbricences.3 O curso é uma coleção de oito volumes de comentários às obras de Aristóteles concebida pelo filósofo jesuíta Pedro da Fonseca para servir de base ao ensino no Colégio de Artes da Universidade de Coimbra, mais ou menos na mesma época em que Camões escrevia Os Lusíadas,e publicado sob a responsabilidade de Manuel de Góis nos anos em que Cervantes engendrava o Quijote. Implícita na visão de Deely está a proposta de que aquele que queira ter uma visão a respeito da inteligência humana que inclua e supere as aporias da filosofia moderna deve recorrer a esse lugar e não a outro. O que é o mesmo que dizer: deve, como trabalho preliminar, cuidar da memória daquele momento fundador da cultura portuguesa.
Embora lembrado pelos conhecedores de história da filosofia portuguesa, o Curso não é suficientemente levado em consideração quando se trata de considerar a identidade da tradição cultural ibérica – o que inclui o Brasil. Não é difícil entender por quê. O fato de se tratar de um sisudo compêndio de filosofia aristotélica sugere uma erudição livresca desprovida da dignidade de um monumento de cultura. Por ser um comentário, sua inspiração parece técnica e rebarbativa. Que sejam comentários escritos em latim, não em português ou espanhol, é fato que o coloca definitivamente fora dos cânones românticos da identidade cultural, que atribuíam um valor central à língua. Por último, mas não menos importante, a fé católica e o estatuto eclesiástico dos autores o colocam fora do padrão de gosto da memória cultural moderna. Um pensador como Joaquim de Carvalho, talvez o grande filósofo e historiador coimbrão do século XX, chega a desdenhar da obra dos padres da Companhia, reconhecendo seu sucesso internacional, mas considerando-a contrária a um suposto espírito criador do humanismo.4
Nenhuma dessas razões é, porém, mais que uma explicação a posteriori. Como é sempre o caso em questões de memória cultural, não se trata de um erro de julgamento histórico por parte de Carvalho ou qualquer outro, mas do desdém de quem não participa de um projeto por não conseguir se ver como seu contemporâneo. Nada foi mais vivo, criativo e de seu tempo do que o conimbricences. Longe de ser uma empreitada de filósofos recolhidos em uma Torre de Marfim, o aristotelismo jesuíta estava para as monarquias ibéricas, mal comparando, como o idealismo estava para a monarquia constitucional prussiana. Fonseca, em Coimbra, era uma espécie de Hegel em Berlim, cortesão, administrador de instituições religiosas e pedagogo de um regime que se valia de sua ordem como elite cultural. O próprio El-Rei Dom Sebastião assistiu à sua defesa de doutorado em Évora. O instrumento pedagógico que ele concebeu servia para formar, na mais rigorosa ciência do tempo, um corpo de missionários que iria promover um dos mais ambiciosos projetos de “política cultural” da história da humanidade. Entre seus frutos contam-se as traduções de Ética a Nicômaco para o chinês e as reduções jesuíticas no Paraguai, sem mencionar a própria Ratio Studiorum, um dos programas pedagógicos mais eficazes de todos os tempos. Os jovens que eram introduzidos em sua árdua doutrina nas salas empoeiradas de Coimbra, Évora, e depois em várias faculdades jesuítas europeias, nada tinham do tipo do estudante melancólico levado entre as paredes de seu quarto, como Fausto, pelo vento de suas elucubrações. Longe de ser um fim em si mesmo, o estudo tinha a finalidade de prepará-los para enfrentar trabalhos e perigos que, vistos com os olhos de hoje, parecem quase mágicos. Nem se poderia esperar outra coisa de um ensino realista, fundado na capacidade humana de conhecer a realidade, que não poderia ter outra finalidade senão prepará-lo a haver-se com ela.
Tampouco deve iludir o leitor o fato de tratar-se de comentários. Originalidade é uma noção elusiva na história da filosofia. Nem o uso de uma terminologia nova, nem a pretensão, comum a partir do século XVIII, de fundar uma nova disciplina filosófica, significam por si mesmas que um filósofo é autor de uma visão pessoal. E vice-versa: um comentário não é necessariamente uma repetição estéril. A boutade de Whitehead, de que todas obras filosóficas da humanidade são um comentário a Platão, é mais verdadeira do que pode, talvez, parecer à primeira vista. Como sabem muito bem os historiadores da filosofia da Idade Média, época dourada do gênero, a exposição fiel, para fins pedagógicos, de uma doutrina, é não poucas vezes ocasião de inovações de caráter epocal na história das ideias.
Este é, precisamente, o caso do Curso Aristotélico coimbrão, que além de ter sido um manual de enorme sucesso editorial, usado em faculdades de toda a Europa por vários séculos (Marx chega a citá-lo em sua tese de doutorado, defendida em Jena, em 1841), foi um marco na história do pensamento lógico.
(continua na parte 2!)
Alexandre Bacelar Marques
Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Autor do livro “A Religião de Carl Schmitt: verdade cristã, autoridade letrada e o poder do Estado do século XX”. Atualmente é Professor de filosofia política e história do pensamento político na Universidade Federal do Piauí.
Texto absolutamente genial
Que furacão de ideias! Me perdi, me confundi, reli, me distanciei, fugi, tremi e suei... brilhante!
Estou ansioso pela parte 2.